Tô Pensando em Contos... Terça-feira Na Tinturaria do Kim






Terça-feira na Tinturaria Kim.




“Bang bang, he shot me down
Bang bang, I hit the ground
Bang bang, that awful sound”
(Bang Bang – Nancy Sinatra)




            Terça-feira era dia de pegar minhas roupas na Tinturaria Kim. O sol brilhava por entre as copas das árvores e refletia sua luz sobre carros meticulosamente encerados e cacos de vidro espalhado pela calçada. Parei para arrumar meu cabelo no reflexo da vidraça despedaçada da Kim . O som do vidro arruinado sendo esmagado pelos meus coturnos enquanto entrava na tinturaria era surpreendente calmante, quase como caminhar sobre uma pista de corrida pavimentada com cascalho.
            O interior da tinturaria era rigorosamente limpo pelos Kim. Com seu piso de linóleo e paredes revestidas de ladrilhos brancos cirurgicamente limpos, um desavisado poderia confundir o local com uma sala de espera de hospital particular. Essa atmosfera era reforçada por cinco fileiras de cadeiras de espera relativamente confortáveis, um mostrador eletrônico informando as senhas de quem já poderia recuperar suas roupas milagrosamente restauradas e um balcão de madeira atrás do qual a filha do senhor Kim entregava senhas e se mantinha como sentinela sobre a caixa registradora. A postura rígida e vigilante da garota lhe emprestava um quê de esfinge. O namorado da garota ficava a postos na outra extremidade do balcão, recebendo roupas e levando-as pela porta que levava ao lugar onde a magia da tinturaria era operada sobre os trapos dos clientes.          

-        Você está com uma mancha aqui – me disse Esther, a garota no balcão me indicava uma área logo abaixo do meu nariz.
-        Aqui? - perguntei tocando o meu lábio. Afastei minha mão e vi que havia algo vermelho e grudento nos meus dedos. Não me lembrava de ter comido catchup no café da manhã. - Obrigado.
-        Sua senha.

             O mostrador marcava 210, a minha senha era a 224. Nunca entendi por que usavam números tão grandes nessas coisas, quando o máximo de pessoas que o local comportaria seria uns trinta sujeitos.
            Peguei a senha e fui me sentar junto aos outros clientes. Àquela hora da manhã, umas quatro senhoras com coques e saias comportadas discutiam animadamente o último capítulo da novela das 21h. Aparentemente, o consenso geral era de que o conteúdo extremamente lascivo era impróprio para comportadas senhoras cristãs que, como elas, abominavam terrivelmente a promiscuidade da mocinha. Elas parariam de assistir, mas o que mais lhes restava para fazer depois de todo o trabalho na casa? Um grupo pouco maior de mulheres, os uniformes denunciando-as como empregadas de um dos condomínios chiques que cercavam a tinturaria, trocava fofocas sobre as vidas nos seus respectivos prédios. Ao fundo, um homem tremia quieto sob o ar condicionado forte do lugar, enquanto na outra extremidade de sua fileira, uma adolescente de cabelos roxos e botas de cano alto lia um livro grosso enquanto ouvia música com seus fones de ouvido, completamente alheia ao resto do mundo. Segui seu exemplo e puxei do bolso da calça os fones do meu iPod.
            Com o aparelho travado num loop de “Bang Bang” da Nancy Sinatra, não havia muito que pudesse fazer para me distrair, então deixei minha mente vagar enquanto olhava para a parede meticulosamente limpa. Limpa demais, na minha opinião. O velho Kim provavelmente fazia com que os funcionários limpassem as fendas entre os ladrilhos com as próprias escovas de dentes para que ficassem tão limpas. Até o teto do estabelecimento parecia brilhar refletindo a luz das lâmpadas florescentes. Ri comigo mesmo imaginando a pequena Esther se balançando no topo de uma escada de mão enquanto tentava passar uma vassoura no teto da tinturaria, mas a risada foi rapidamente cortada por uma pontada peito. Algo ali não estava certo.
            A primeira pessoa a entrar na tinturaria depois de mim foi uma jovem de seus 20 anos com uma sacola, puxando atrás de si um grande labrador dourado.
           
            —   Aqui não! - gritou do balcão uma Esther comicamente esbugalhada – o cachorro não pode entrar!
-        Mas... - balbuciou atônita a mulher com o cachorro.
-        Volte sem o cachorro se quiser entrar! Não queremos sujeira aqui dentro. Fora!

            Num misto de espanto e indignação, a jovem saiu, arrastando atrás de si o cachorro. Segui ambos com os olhos pela calçada, demorando bastante nas pernas bronzeadas da dona do labrador. O cão trotava alegremente ao seu lado. Então percebi.
            Olhei à minha volta, mas não pude captar sinal do que teria estilhaçado a janela na entrada. Se foi uma briga, os Kim tinham sido muito rápidos em limpar os vestígios no interior da loja, bem como em se livrar dos brigões. O próprio buraco na vidraça parecia muito menor agora, e pela atitude do labrador, os cacos de vidro provavelmente não estavam mais espalhados pela calçada.

            Chamaram minha senha.
-        O senhor vai ver que tiramos todas aquelas manchas, mas não pudemos fazer nada pelos buracos – me disse Alan, o namorado de Esther no balcão.
-        Tudo bem. São R$35,00, certo?
-        Epa! Essas são as minhas roupas! - o homem gritou de um dos bancos do fundo.
-        Não, olha só...
-        São minhas! - Ele puxou um revólver e me alvejou no peito. Atravessei a vidraça impecável enquanto caía na calçada, o som de Nancy ainda cantando nos meus fones “Bang bangI hit the ground, bang bang, that awful sound” se misturando ao de vidro quebrando.


            Terça-feira era dia de pegar minhas roupas na Tinturaria Kim. O sol brilhava por entre as copas das árvores e refletia sua luz sobre carros meticulosamente encerados e cacos de vidro espalhado pela calçada. Parei para arrumar meu cabelo no reflexo da vidraça despedaçada da Kim . O som do vidro arruinado sendo esmagado pelos meus coturnos enquanto entrava na tinturaria era surpreendente calmante, quase como caminhar sobre uma pista de corrida pavimentada com cascalho.









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7 comentários

  1. Olá, Lelê. Olá, Bruno.
    Gostei bastante do conto. Desconfiava de algo surpreendente no final, mas não imaginava isso. Essa mudança brusca foi muito boa. Adorei.

    Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de maio. Serão três vencedores!

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  2. Gosto muito de contos escritos dessa maneira, a expectativa foi muito grande pra saber o que houve! Adorei! Muito bem escrito e com um final surpreendente <3
    Beeeijos!
    Livros, Amor e Mais

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  3. e no fim acabou-se sujando o chão da tinturaria, que enredo!

    http://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/

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  4. E o sangue...e as manchas...e o bang, bang!!!
    Uau!!!!
    Eu sempre falo, quarta feira é meu dia preferido no blog..rs por esse contos e pelos outros, cada um a sua maneira de deixar o leitor assim, embasbacado na tela..
    Adorei!!!!
    Beijo

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  5. Oxente, eu entendi direito ? Ele mesmo conta a sua morte ? Sei lá, fiquei confusa agora kkkkk
    Mas claro que não esperava isso! Que conto original e tao bom que prende o leitor.
    Belo final ;)

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  6. Uoool! Me surpreendi com a final do conto!!
    Maravilhoso!
    Me prendeu a atenção desde o começo e eu tinha ctz q ia ser surpreendida!!!
    Adoreeeei!
    Bjs!

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  7. E ai você encontra um conto desses e se surpreende com o tamanho, a originalidade e o enredo! Muito bom, parabéns. Adoro contos, a rapidez que flui o desenrolar do enredo e o quanto pode levar da ansiedade a surpresa. Abraços.

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